terça-feira, janeiro 11, 2005

Um país e maiorias

É sempre o mesmo problema, vezes e vezes sem fim: o que há de comum entre um país e um barco? A necessidade de comando firme dirão uns. O facto de andar à deriva dirão outros, pensando em Portugal com a amarga ironia característica do povo que cá habita. Cá está uma pergunta ridícula para dar início a um texto cretino, dirão os mais sábios. Qual é o esquema? Perguntarão uns poucos amantes de teorias da conspiração. Terão todos razão em parte, tendo eu razão ou não.

Em Portugal o novo esquema são as maiorias absolutas. Em poucos anos ultrapassámos a necessidade de minorias, que chegaram a ser defendidas como fundamentais à expressão da pluralidade democrática, e chegámos finalmente à necessidade de maiorias, que são defendidas tendo como base o modelo náutico, isto é, a necessidade de um comando firme e incontestado para levar o navio a bom termo.
Daí a questão inicial: o que há de comum entre um país e um barco?
Esta questão não é original, nem a sua origem recente. Oscilações entre regimes plurais e totalitários são comuns na história portuguesa e mundial. No caso da democracia refiro-me a um totalitarismo a prazo, bem entendido, e enquadrado com os necessários mecanismos que evitam os excessos conhecidos do passado, porque dos excessos futuros não sabemos ainda como defender-nos.
Evitarei aqui exemplos de um passado recente a que somos todos sensíveis para evitar uma leitura radicalizada do texto e a colagem indesejável de personagens do presente a personagens do passado, porque esse não é o meu objectivo. Mas, ninguém terá dificuldade em reconhecer nesta questão semelhanças com as que opuseram facções do senado romano a propósito de aceitar ou não um imperador (um César) e posteriormente a propósito desse imperador estar acima do mesmo senado ou lhe dever obediência. Roma tornou-se um império, é certo, e ninguém lhe negará o sucesso económico conseguido à custa da sangria das colónias do Império. Roma, foi em muitos aspectos um barco levado a bom porto, dependendo os percalços da viagem das qualidades dos seus sucessivos capitães. Pode dizer-se que a Roma Imperial foi em algum momento um país? Não. E talvez possam argumentar por isso que o exemplo foi mal escolhido. Mas não inocentemente.
Nem na questão levantada nem nos argumentos apresentados existe realmente nada de original. A literatura de ficção está cheia de exemplos e parábolas acerca do assunto. Uma das mais famosas parábolas é “O Triunfo do Porcos” de George Orwell (também aqui não tenciono colagens ou juízos radicais). O Barco neste caso (a quinta) não foi levado a bom porto, uma vez mais responsabilidade devida aos seus capitães.
Mas, o que existe de facto de semelhante entre um país e um barco? Aqui depende um pouco da perspectiva, e a minha própria perspectiva se divide. Por vezes um país não tem nada a ver com um barco, no sentido em que não existe de facto um porto paradisíaco a alcançar, onde a viagem termine e voltemos de novo às nossas vidas. Estamos aqui presos uns com os outros, com as gerações passadas e com as gerações futuras, e o porto imaginário não é um escolhido de antemão, mas pode mudar de geração em geração de acordo com as aspirações de toda a gente (as dos meus filhos, bem diferentes das minhas), e é um porto a que nunca queremos chegar (querendo sempre chegar) porque é esse desejo de futuro que nos faz avançar sempre. Também aqui precisamos de capitães, mas não de capitães de barco, com rota traçada, objectico a atingir a todo o custo e sacrifício da tripulação. Aqui queremos capitães poetas, capitães festivos, que sintam o pulso da gente, as suas aspirações, e neste barco onde estaremos para sempre (agora e depois na memória dos outros) queremos que se faça sempre o melhor, apenas o melhor. O melhor é o que corresponde à aspiração colectiva da gente. O melhor pode ser procurar o Graal e deixar de lado a convergência Europeia, por muito louco ou fora de moda que seja.
Mas o corpo também precisa de alimento. E um país pequeno como Portugal pode ganhar o pão com os contratos que a Europa lhe dá. E os contratos são como rotas planeadas de antemão, e a tripulação tem de ir aonde o coração não quer mas a barriga pede, e aí...aí sim, precisamos de um capitão de navio, um Mr. Blight com as suas vergastadas. Iremos decerto a bom porto e encheremos a barriga, mas os nossos filhos (os que sobreviverem) nunca serão poetas.

"Many animals had been born to whom the Rebellion was only a dim tradition, passed on by word of mouth, and others had been bought who had never heard mention of such a thing before their arrival. The farm possessed three horses now besides Clover. They were fine upstanding beasts, willing workers and good comrades, but very stupid. None of them proved able to learn the alphabet beyond the letter B. " -
George Orwell, The Animal Farm