domingo, fevereiro 06, 2005

Da inviabilidade do ser humano


Ainda está por esclarecer a quem interessa que geração após geração os portugueses se mantenham maioritariamente iletrados.

Assim se mantém a amenidade de um país com défice de subversão, porque a verdade é sempre subversiva. Um esquema mantido através da formação deficiente nas escolas, do preço proibitivo dos livros, da falta de horas livres que permitam aos portugueses dedicar tempo à sua educação contínua. Um esquema montado por forma a retirar aos portugueses a possibilidade de participação efectiva na escolha do seu próprio destino, e que os atira indefesos para as mãos de meia dúzia de privilegiados, que se encarregam de conduzir a bel prazer a massa amorfa das mentalidades incompletamente formadas, asfixiadas, privadas de cidadania.

Não existe nada mais incompatível com a concepção de grandes planos estratégicos, do que o vazio do estômago e a exaustão ao final do dia. As ideias que nos movem a todos são ainda hoje geradas em poucas mentes com muita disponibilidade: a minoria dos ricos e dos ociosos. Um grupo sem nome, afiliação partidária ou religião comum, cujo status quo não pode ser posto em causa: são eles que determinam as causas à esquerda, à direita, a favor ou contra, em páginas e páginas de incontáveis artigos. São deles os slogans, os pensamentos do dia, as análises do estado da nação, cujas frases melhor conseguidas passam em rodapé de programa de televisão, ou em lombada de calendário. E é assim desde sempre, não é apenas de hoje. Eis porque Lula da Silva assustou tanta gente, eis porque surpreendeu tanta gente.

E não é que não tenham uma estratégia para nós, são quase sempre homens inteligentes que sabem o querem. Sabem também como convencer-nos que o que querem é o que queremos (o que quereriamos se tivéssemos acesso à mesma informação e o mesmo tempo para pensar nela). Eis que nos mostram que precisamos de uma economia competitiva, que ela se baseia na formação (não na educação nem no acesso à informação), no sacrifício, na contenção salarial, no aumento dos anos de trabalho. Tudo isto sem mexer nos direitos adquiridos. E essa economia tem que ser competitiva à custa do desaparecimento das nossas indústrias não competitivas, à custa do despedimento dos nossos trabalhadores não competitivos, porque hoje estamos numa economia global.

O que não nos dizem, não podem dizê-lo porque não o compreenderíamos, é que a falta de competitividade da nossa economia se deve aos direitos adquiridos. Que não é possível que os nossos trabalhadores possam competir com os trabalhadores chineses sem ser reconduzidos a uma condição de semi-escravatura. Que os chineses não produzem apenas roupa e produtos de má qualidade, mas também tecnologia de ponta e produtos de elevada qualidade, que são comercializados omitindo a sua origem, que a requalificação tecnológica das nossas empresas não muda nada. Que só poderemos ser competitivos numa economia global se perdermos os direitos adquiridos.

Eis porque interessa que geração após geração os portugueses se mantenham maioritariamente iletrados. Eis porque interessa negar-lhes o direito à informação, excepto a que é processada e digerida pelos nossos criadores de opinião. É preciso tornar o país competitivo, e isso já não é compatível com uma sociedade informada. A verdade é sempre subversiva; um obstáculo à viabilidade económica .


Newspapers will presumably continue until television technique reaches a higher level, but apart from newspapers it is doubtful even now whether the great mass of people in the industrialized countries feel the need for any kind of literature. They are unwilling, at any rate, to spend anywhere near as much on reading matter as they spend on several other recreations. Probably novels and stories will be completely superseded by film and radio productions. Or perhaps some kind of low grade sensational fiction will survive, produced by a sort of conveyor-belt process that reduces human initiative to the minimum.

(in "The Prevention of Literature", George Orwell)