sábado, fevereiro 26, 2005

As mil faces em torno do centro


Já muito foi dito sobre a plasticidade humana, a sua versatilidade, a capacidade de se adaptar às situações mais adversas, mais díspares. A plasticidade do animal homem vai tão longe que chega a originar formas puríssimas de manifestação no teatro e na política: o actor das mil caras e o político que cai sempre de pé.
O homem comum, nas sociedades ocidentais de grandes números, vive um pouco estes dois paradigmas da plasticidade: a de actor e a de sobrevivente. Vive-a porque a diversidade está agora à sua porta. Os mundos por onde a diáspora humana se espalhou, onde o que é diferente se forjou, implodem para um epicentro que não sendo o original, é neste momento o centro de massa dos movimentos humanos. As diferentes faces, os papeis do homem-ator na sociedade, são por vezes incontáveis; o profissional, o amigo, o amante, o militante, em ciclos cada vez mais anónimos, diluidos pelo número e pela separação espacial dos palcos, e pela constante migração entre ciclos sociais que caracteriza a vida de um homem de hoje.
Uma diversidade de máscaras que já levou muitos a pensar se o homem de hoje será mais do que as máscaras que o constituem. O interior do homem, o seu epicentro, a sua alma, aquilo que o distingue dos outros, deixou de ser uma categoria diferenciável da sua habilidade plástica, do seu repertório de máscaras e da sua capacidade de se adaptar aos diferentes papeis que lhe são exigidos. Quanto mais plástico um homem é, mais “alma” apresenta em cada papel, mas cada vez menos se lhe consegue reconhecer uma “alma própria”, que se sobreponha a todos os papeis; a “alma própria” toma um aspecto de rigidez, de inflexibilidade, de retrogradismo, que torna o homem pouco plástico e o incapacita para os papeis.
Do epicentro do homem-das-mil-caras pouco se pode saber, ele próprio genuinamente o desconhece, se joga cada um dos papeis com total sinceridade, se lhes dá sempre “alma”. O homem-das-mil-caras é um indivíduo paradoxal porque se por um lado vive plenamente todos os registos da sociedade enquanto actua, por outro opõe-se naturalmente ao registo simbólico da sociedade expresso na literatura, no cinema e em vários registos artísticos ou religiosos, que cultivam o mito heróico do homem de “alma própria”. O homem-das-mil-caras é no registo simbólico um pária, tal como o homem de “alma própria” é um pária no registo real. Que algum homem hoje possa em plena consciência sentir-se plenamente realizado e feliz, esse é o maior dos paradoxos.